A viagem a Lampedusa é a primeira encíclica, não escrita, toda
ela de papa Francisco. O ministério petrino se despe das suas vestes
monárquicas (confira o evangelho da missa de domingo: não leveis nem bolsa, nem
sacola, nem sandálias) para se tornar encontro com a pessoa humana.
O comentário é de Christian Albini, cientista político e teólogo
italiano, leigo, no seu blog Sperare per tutti, 08-07-2013. A tradução é
da IHU On-Line.
O impacto midiático desta viagem pôs, durante um dia, no centro aquilo
que é uma periferia da sociedade, da economia e da existência. É o programa de Bergoglio
em ato. Igualmente a notícia da canonização de João XXIII e João Paulo
II girou o mundo, com uma ressonância muito maior do que a Lumen fidei.
É o sinal de uma unanimidade que não é insensível à mensagem de fé, mas escuta
mais a linguagem do encontro com as pessoas e com a santidade do que aquilo que
é prevalentemente doutrinal.
" A globalização da
indiferença nos tirou a capacidade de chorar ".
O discurso de Francisco em
Lampedusa
"Quem é o responsável pelo sangue destes irmãos e irmãs? Ninguém!
Todos nós respondemos assim: não sou eu, não tenho nada a ver com isso; serão
outros, eu não certamente. Mas Deus pergunta a cada um de nós: «Onde está o
sangue do teu irmão que clama até Mim?» Hoje ninguém no mundo se sente
responsável por isso; perdemos o sentido da responsabilidade fraterna; caímos
na atitude hipócrita do sacerdote e do levita de que falava Jesus na parábola
do Bom Samaritano", afirma Papa Francisco, na homilia proferida, em Lampedusa, na Itália.
A missa, presidida pelo papa, foi celebrada depois de Francisco,
acompanhado por barcos de pescadores de Lampedusa, ter jogado no mar uma coroa
de crisântemos seguido de uma profunda e emociante oração silenciosa, em
memória dos emigrantes que morreram no Mediterrâneo, na entrada da Europa.Na missa, o altar, o cálice e o báculo do Papa foram feitos com restos
de madeira que sobraram dos barcos naufragados. Sim, o Papa, no meio dos
emigrantes, usou um báculo de madeira. Algo raro na história.
Segundo Francisco, "a cultura do bem-estar, que nos leva a pensar
em nós mesmos, torna-nos insensíveis aos gritos dos outros, faz-nos viver como
se fôssemos bolas de sabão: estas são bonitas mas não são nada, são pura ilusão
do fútil, do provisório. Esta cultura do bem-estar leva à indiferença a
respeito dos outros; antes, leva à globalização da indiferença. Neste mundo da
globalização, caímos na globalização da indiferença. Habituamo-nos ao
sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é
responsabilidade nossa!"
Eis a homilia.
Emigrantes mortos no mar; barcos que em vez de ser uma rota de
esperança, foram uma rota de morte. Assim recitava o título dos jornais. Desde há
algumas semanas, quando tive conhecimento desta notícia (que infelizmente se
vai repetindo tantas vezes), o caso volta-me continuamente ao pensamento como
um espinho no coração que faz doer. E então senti o dever de vir aqui hoje para
rezar, para cumprir um gesto de solidariedade, mas também para despertar as
nossas consciências a fim de que não se repita o que aconteceu. Que não se
repita, por favor.
Antes, porém, quero dizer uma palavra de sincera gratidão e
encorajamento a vós, habitantes de Lampedusa e Linosa, às
associações, aos voluntários e às forças de segurança, que tendes demonstrado –
e continuais a demonstrar – atenção por pessoas em viagem rumo a qualquer coisa
de melhor. Sois uma realidade pequena, mas ofereceis um exemplo de
solidariedade! Obrigado! Obrigado também ao Arcebispo Dom Francesco
Montenegro pela sua ajuda, o seu trabalho e a sua solidariedade pastoral.
Saúdo cordialmente a Presidente da Câmara Senhora Giusi Nicolini, muito
obrigado por aquilo que fez e faz. Desejo saudar os queridos emigrantes
muçulmanos que hoje, à noite, começam o jejum do Ramadã, desejando-lhes abundantes frutos espirituais. A
Igreja está ao vosso lado na busca de uma vida mais digna para vós e vossas
famílias. A vós digo: oshià!
Nesta manhã quero, à luz da Palavra de Deus que escutamos, propor
algumas palavras que sejam sobretudo uma provocação à consciência de todos, que
a todos incitem a refletir e mudar concretamente certas atitudes.
"Adão, onde estás?": é a primeira pergunta que Deus faz ao
homem depois do pecado. "Onde estás, Adão?". E Adão é um homem
desorientado, que perdeu o seu lugar na criação, porque presume que vai
tornar-se poderoso, poder dominar tudo, ser Deus. E quebra-se a harmonia, o
homem erra; e o mesmo se passa na relação com o outro, que já não é o irmão a
amar, mas simplesmente o outro que perturba a minha vida, o meu bem-estar. E
Deus coloca a segunda pergunta: "Caim, onde está o teu irmão?" O
sonho de ser poderoso, ser grande como Deus ou, melhor, ser Deus, leva a uma
cadeia de erros que é cadeia de morte: leva a derramar o sangue do irmão!
Estas duas perguntas de Deus ressoam, também hoje, com toda a sua força!
Muitos de nós – e neste número me incluo também eu – estamos desorientados, já
não estamos atentos ao mundo em que vivemos, não cuidamos nem guardamos aquilo
que Deus criou para todos, e já não somos capazes sequer de nos guardar uns com
os outros. E, quando esta desorientação atinge as dimensões do mundo, chega-se
a tragédias como aquela a que assistimos.
"Onde está o teu irmão? A voz do seu sangue clama até Mim",
diz o Senhor Deus. Esta não é uma pergunta posta a outrem; é uma pergunta posta
a mim, a ti, a cada um de nós. Estes nossos irmãos e irmãs procuravam sair de
situações difíceis, para encontrarem um pouco de serenidade e de paz;
procuravam um lugar melhor para si e suas famílias, mas encontraram a morte.
Quantas vezes outros que procuram o mesmo não encontram compreensão, não
encontram acolhimento, não encontram solidariedade! E as suas vozes sobem até
Deus! Uma vez mais vos agradeço, habitantes de Lampedusa, pela
solidariedade. Recentemente falei com um destes irmãos. Antes de chegar aqui,
passaram pelas mãos dos traficantes, daqueles que exploram a pobreza dos
outros, daquelas pessoas para quem a pobreza dos outros é uma fonte de lucro.
Quanto sofreram! E alguns não conseguiram chegar.
"Onde está o teu irmão?" Quem é o responsável por este sangue?
Na literatura espanhola, há uma comédia de Félix Lope de Vega, que conta
como os habitantes da cidade de Fuente Ovejuna matam o Governador,
porque é um tirano, mas fazem-no de modo que não se saiba quem realizou a
execução. E, quando o juiz do rei pergunta "quem matou o Governador",
todos respondem: "Fuente Ovejuna, senhor". Todos e ninguém!
Também hoje assoma intensamente esta pergunta: Quem é o responsável pelo sangue
destes irmãos e irmãs? Ninguém! Todos nós respondemos assim: não sou eu, não
tenho nada a ver com isso; serão outros, eu não certamente. Mas Deus pergunta a
cada um de nós: "Onde está o sangue do teu irmão que clama até Mim?"
Hoje ninguém no mundo se sente responsável por isso; perdemos o sentido
da responsabilidade fraterna; caímos na atitude hipócrita do sacerdote e do
levita de que falava Jesus na parábola do Bom Samaritano: ao vermos o irmão
quase morto na beira da estrada, talvez pensemos "coitado" e
prosseguimos o nosso caminho, não é dever nosso; e isto basta para nos
tranquilizarmos, para sentirmos a consciência em ordem.
A cultura do bem-estar, que nos leva a pensar em nós mesmos, torna-nos
insensíveis aos gritos dos outros, faz-nos viver como se fôssemos bolas de
sabão: estas são bonitas mas não são nada, são pura ilusão do fútil, do
provisório. Esta cultura do bem-estar leva à indiferença a respeito dos outros;
antes, leva à globalização da indiferença. Neste mundo da globalização, caímos
na globalização da indiferença. Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos
diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa!
Reaparece a figura do "Inominado" de Alexandre Manzoni.
A globalização da indiferença torna-nos a todos "inominados",
responsáveis sem nome nem rosto.
"Adão, onde estás?" e "onde está o teu irmão?" são
as duas perguntas que Deus coloca no início da história da humanidade e dirige
também a todos os homens do nosso tempo, incluindo nós próprios. Mas eu queria
que nos puséssemos uma terceira pergunta: "Quem de nós chorou por este
facto e por factos como este?"
Quem chorou pela morte destes irmãos e irmãs? Quem chorou por estas
pessoas que vinham no barco? Pelas mães jovens que traziam os seus filhos? Por
estes homens cujo desejo era conseguir qualquer coisa para sustentar as
próprias famílias? Somos uma sociedade que esqueceu a experiência de chorar, de
"padecer com": a globalização da indiferença tirou-nos a capacidade
de chorar!
No Evangelho, ouvimos o brado, o choro, o grande lamento: "Raquel
chora os seus filhos (...), porque já não existem". Herodes semeou morte
para defender o seu bem-estar, a sua própria bola de sabão. E isto continua a
repetir-se... Peçamos ao Senhor que apague também o que resta de Herodes no
nosso coração; peçamos ao Senhor a graça de chorar pela nossa indiferença, de
chorar pela crueldade que há no mundo, em nós, incluindo aqueles que, no
anonimato, tomam decisões socioeconómicas que abrem a estrada aos dramas como
este. "Quem chorou?" Quem chorou hoje no mundo?
Senhor, nesta Liturgia, que é uma liturgia de penitência, pedimos perdão
pela indiferença por tantos irmãos e irmãs; pedimo-Vos perdão, Pai, por quem se
acomodou e se fechou no seu próprio bem-estar que leva à anestesia do coração;
pedimo-Vos perdão por aqueles que, com as suas decisões a nível mundial,
criaram situações que conduzem a estes dramas. Perdão, Senhor!
Senhor, fazei que hoje ouçamos também as tuas perguntas: "Adão,
onde estás? Onde está o sangue do teu irmão?"
Nenhum comentário:
Postar um comentário